A dança, enquanto linguagem do corpo, é uma forma ancestral de comunicação não verbal. Quando se une à sonoridade da palavra — e mais concretamente à onomatopeia — abre-se um campo expressivo inovador, acessível e profundamente intuitivo.
Neste artigo, propomos explorar de forma prática e criativa como utilizar onomatopeias como ponto de partida para movimentos corporais. Ideal para grupos artísticos, educadores, bailarinos ou famílias que procuram novas abordagens sensoriais e expressivas, esta proposta reinventa a escuta e devolve à palavra um corpo vivo.
O que é uma onomatopeia?
A onomatopeia é uma figura de linguagem que imita sons reais, transformando-os em palavras: tic-tac, crash, ploof, zzz, boom, clap, entre muitos outros. É uma forma primitiva e universal de nomear o som através do som.
Mas e se, além de ser ouvida ou lida, a onomatopeia pudesse ser sentida e dançada?
O corpo como tradutor de sons
O corpo humano tem a capacidade de traduzir sons em gestos de forma intuitiva. Quando ouvimos um “pum”, automaticamente encolhemos os ombros. Quando ouvimos um “sssshh”, quase sentimos o ar deslizar nas costas. Esta resposta é instintiva, sensorial e muitas vezes inconsciente.
A proposta aqui é tornar esse processo consciente e criativo, usando onomatopeias para gerar sequências de movimento, composições coreográficas e improvisações com forte carga sensorial e poética.
Benefícios de trabalhar onomatopeia e movimento
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Estimula a consciência sonora e corporal
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Desenvolve a escuta activa e a expressividade
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Desbloqueia tensões criativas e corporais
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É inclusivo: pode ser praticado por qualquer idade ou nível técnico
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Estimula a imaginação e a capacidade de improviso
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Promove a integração entre linguagem verbal e não verbal
Como aplicar: guia prático em 5 etapas
1. Recolher sons
Começa por escutar o quotidiano. Pede aos participantes que gravem ou escrevam sons que ouvem durante o dia. Pode ser o som de uma chaleira, o ladrar de um cão, o bater de uma porta, o tilintar de um copo.
Cada som recolhido deve ser convertido numa palavra onomatopaica própria, por exemplo:
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Chaleira: pssssss
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Porta a bater: blam
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Copo a cair: clinc
Incentiva a criação de onomatopeias novas e não padronizadas. A criatividade começa aqui.
2. Atribuir qualidades ao som
A seguir, analisa com o grupo a textura do som:
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É seco ou húmido?
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Curto ou prolongado?
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Explosivo ou deslizante?
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Baixo ou agudo?
Estas qualidades vão guiar a forma como o som será interpretado pelo corpo. Um som seco pode inspirar um movimento brusco e angular; um som fluido pode levar a um gesto mais contínuo e circular.
3. Explorar o movimento correspondente
Cada som passa agora a ser representado fisicamente. A regra de ouro é: não há certo ou errado. Há movimento que faz sentido no corpo de quem escuta o som.
Exemplo:
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“Blam”: um salto, uma queda, um impacto
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“Ssssshh”: deslizar as mãos no ar, como se empurrassem o silêncio
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“Ploof”: colapso suave dos joelhos ou queda lateral leve
Experimenta os sons de pé, sentados, no chão, com os olhos abertos e fechados. Quanto mais variação, mais riqueza expressiva.
4. Criar sequências com ritmo
Agora que já tens um repertório de movimentos-sonoros, propõe a criação de frases coreográficas curtas com base numa sequência de onomatopeias.
Exemplo:
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Boom – tchá – zzzz – plim
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A sequência pode ser: impacto forte, gesto rítmico, deslizamento do braço, salto leve
Pede aos participantes que experimentem diferentes velocidades e intensidades para a mesma sequência.
5. Composição final ou improvisação
Dependendo do grupo, podes optar por:
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Criar uma composição fixa, com uma sequência de sons e movimentos ensaiada
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Realizar uma improvisação guiada, onde cada som surge como estímulo espontâneo (dito por alguém ou ouvido numa gravação)
Gravar esta criação pode ser um excelente exercício de memória corporal, criação artística ou até mesmo de registo poético em vídeo.
Adaptações por contexto
Em contexto escolar
Esta técnica pode ser aplicada em aulas de expressão dramática, música, educação artística ou dança criativa. Também é excelente para alunos com dificuldades de concentração ou expressão verbal, pois permite o acesso à linguagem simbólica sem pressão.
Em ensaios coreográficos
A técnica pode ser usada como aquecimento criativo ou como ferramenta de desbloqueio. Também pode originar solos, duos ou sequências corais abstractas e com grande força cénica.
Em ambiente familiar
Em casa, pode tornar-se num jogo lúdico entre pais e filhos, promovendo a escuta, o riso e a expressividade. Uma chuva de sons e gestos antes de dormir pode ser mais eficaz do que qualquer história contada às pressas.
Sugestões de temas para exploração
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Sons da natureza (vento, folhas, chuva, trovão)
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Sons do corpo (batimento, respiração, estômago, suspiro)
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Sons urbanos (trânsito, buzina, metro, multidão)
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Sons inventados (misturas, exageros, nonsense)
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Sons espirituais (voz interior, silêncio, eco)
Possíveis combinações com outras artes
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Desenho: cada som é traduzido num traço, que depois é dançado
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Poesia: juntar onomatopeias a versos livres
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Voz: explorar como o corpo reage ao som da própria voz
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Fotografia: captar imagens de gestos que representem um som específico
Considerações finais
A dança não é apenas feita de passos; é feita de impulsos, escuta e intenção. Ao utilizar onomatopeias como ponto de partida, criamos uma ponte entre o som e o gesto, entre o invisível e o visível.
Transformar sons em movimento é mais do que uma técnica. É um regresso ao essencial: a criança que brinca, o artista que escuta, o corpo que fala sem pedir licença.
Esta abordagem amplia os horizontes da criação artística, e ao mesmo tempo, reforça a relação com o sensível, o espontâneo e o poético. É um convite para dançar o mundo antes que ele nos cale.